Jorge Samuel, mais conhecido como Samuca, é uma força transformadora no cenário cultural de Curitiba. Nascido e criado nos subúrbios do Rio de Janeiro, sua trajetória como dançarino e produtor o levou a se tornar um nome importante no funk e a criar o Baile da Durag, uma celebração da cultura preta e da liberdade expressiva do funk em uma cidade que historicamente não possuía laços fortes com essa cena.
De Teresópolis a Curitiba: A Jornada de Samuca
Samuca começou cedo. Ainda adolescente, organizava batalhas de passinho em Teresópolis e integrou o corpo de balé de grandes produções, incluindo o primeiro DVD de Anitta, quando ela ainda era uma promessa do funk furando a bolha do estilo. Em meio a essas oportunidades, ele aprendeu na prática o que significa produção de eventos em alto nível, convivendo com diretores e produtores renomados. Mesmo que seu sonho inicial fosse ser dançarino, seu destino o levava a um outro papel: a produção cultural, onde poderia explorar ainda mais sua visão de um funk raiz, sem branqueamento ou adaptações elitistas.
Ao se mudar para Curitiba, ele notou as diferenças culturais e o quanto o funk era incompreendido. “Curitiba não aceitava o funk verdadeiro, queriam uma versão enlatada, com hits comerciais e sem o proibidão. Não reconheciam a potência cultural do funk raiz,” diz Samuca. E foi nesse contexto que nasceu o Baile da Durag, um evento que transcende o entretenimento e traz consigo uma proposta cultural e educativa, onde o público é convidado a ver e sentir o funk em sua essência.
Baile da Durag: Pluralidade, Resistência e Autoestima Preta
O Baile da Durag é mais do que um evento; é um espaço de pertencimento para pessoas pretas e LGBTQIA+, onde todos se sentem bem-vindos e respeitados. “A essência do funk é liberdade, respeito e disciplina,” explica Samuca. Ele afirma que, no baile, nunca foi necessário “explicitar que é um evento preto” ou colocar sinalizações para que todos se respeitem; o ambiente já traz essa mensagem de forma implícita. E a escolha do nome — “Durag” — faz referência ao pano de cetim usado para proteger o cabelo, um símbolo cultural importante da estética e identidade negra no mundo todo.
Além disso, Samuca preza pela representatividade em toda a cadeia de produção do baile. Para ele, não basta colocar pessoas pretas no palco; é essencial que o evento seja gerido por elas, em todos os níveis. “A nossa produção é preta, do bar à direção de vídeo. Isso é um diferencial que traz autenticidade e fortalece o baile como um movimento de resistência”, afirma. Em uma cidade onde a presença negra é subestimada e a cultura preta é, por vezes, invisibilizada, o Baile da Durag se destaca como um ato de reafirmação de identidade.
Construindo Comunidade e Inspirando Autoestima
Cada edição do Baile da Durag carrega um compromisso de oferecer ao público mais do que diversão. Samuca compartilha um relato tocante de um frequentador que se sentiu acolhido e empoderado pelo ambiente do baile, onde, pela primeira vez, viu pessoas negras em posições de destaque, como DJs e produtores. “Muitas vezes, a população preta precisa de exemplos que mostrem que é possível ocupar esses espaços”, reflete ele. Essa conexão direta com o público é o que Samuca considera a maior conquista do Baile da Durag.
Desafios e Superação no Cenário Curitibano
Curitiba, com sua cultura predominantemente branca, ainda desafia produtores como Samuca. Apesar da aceitação crescente, ele sabe que o racismo e o preconceito ainda são barreiras veladas. Para contornar esses obstáculos, ele estabelece conversas honestas com os espaços que abrigam o baile, exigindo comprometimento com o respeito e a inclusão de pessoas trans, negras e periféricas.
“Tem casas que querem nosso público e o dinheiro que ele traz, mas não se preparam para recebê-los de forma respeitosa. A gente deixa claro desde o começo que o Baile da Durag é um espaço de liberdade, e que isso precisa ser respeitado”, afirma.
Pluralidade e Expansão Musical: A Curadoria do Baile da Durag
Samuca enxerga a curadoria musical do baile como uma forma de manter viva a autenticidade do funk. DJs de várias regiões do Brasil trazem seus sons e estilos distintos, mostrando a diversidade do funk como gênero musical. Ele acredita que o funk é, em sua essência, um estilo com milhares de subgêneros, e se orgulha de ter quebrado estereótipos em Curitiba. O baile tem espaço para todos os tipos de funk — do proibidão ao mandelão e ao funk das antigas — criando uma pista viva e pulsante, onde cada pessoa se sente representada.
“Eu invisto neles e eles investes em mim”
Com quase 20 edições realizadas, Samuca reconhece que o sucesso do baile é resultado da fidelidade e engajamento do público, que se organiza para comparecer, independentemente das dificuldades. Ele se emociona ao falar sobre o público que, em suas palavras, é a “verdadeira atração do baile”. Em cada edição, ele faz questão de oferecer a melhor experiência possível, com preços acessíveis e um ambiente acolhedor. Para ele, a festa não é apenas um momento de diversão, mas também uma plataforma para fortalecer a autoestima e a presença preta em Curitiba.
Uma Lição de Resiliência e Compromisso
Samuca diz que sua missão é fazer com que o funk seja reconhecido pelo que realmente é: uma expressão cultural rica e complexa, que carrega a história e a vivência de um povo. E ele faz isso com a mesma seriedade que herdou de sua avó, frequentadora de uma escola de samba no Rio desde sua fundação, até os 70 anos de idade. Samuca logo cedo aprendeu a importância da palavra e do compromisso.
Em cada detalhe do Baile da Durag, desde a escolha dos DJs até o diálogo com os espaços, Samuca mantém vivo o espírito do funk, uma cultura de resistência e liberdade, que agora ecoa forte também em Curitiba com outros bailes e coletivos. Samuca sempre deixa claro que quer ver uma nova geração prosperando, o próprio nome da produtora diz muito sobre isso, Jovem Preto Velho.
O Baile da Durag é um ato de resistência e uma celebração da cultura preta. Ele mostra que, independentemente do local, é possível construir um espaço de acolhimento, liberdade e respeito. E, nas palavras de Samuca, “Vou proteger o funk, vou fazer isso para o público preto, trabalhador, periférico. E vai ser foda”.
E, de fato, está sendo.
fotos: Otavio Henrique, Arthur Gomes e Flor Letícia