O futebol tem um poder único, une povos, muda vidas, cria paixões , e como o esporte mais popular da humanidade. faz parte de diversos momentos da nossa história. Mesmo com seu poderio e magia, o esporte não consegue derrotar seu maior adversário, o racismo. A discriminação racial aplica goleadas semanais no humanismo e na igualdade.
Miguel do Carmo – Migué, o pioneiro
Existem poucas informações disponíveis sobre a vida de Jorge Araújo Miguel do Carmo, conhecido como Migué. Nascido em 10 de abril de 1885, apenas três anos antes da abolição da escravatura, Migué não era apenas um jogador de futebol, mas também um dos fundadores da famosa Associação Atlética Ponte Preta. Em 1900, ele assinou o documento de fundação do clube e participou de partidas desde então, além de desempenhar o papel de tesoureiro. Durante o início do século XX, outros homens negros, cujas identidades ainda não foram descobertas pelos pesquisadores, também fizeram parte das equipes formadas pelo clube.
Migué jogou pela Ponte Preta até meados de 1904, quando foi transferido para Jundiaí pela Companhia Paulista de Estradas de Ferro, onde trabalhava como fiscal de linha. Infelizmente, ele faleceu em 1932, aos 47 anos, devido a complicações após uma cirurgia estomacal.
Joaquim Prado – Preto e Aristocrata
Joaquim Prado deixou poucos registros para os historiadores. A única referência mais detalhada sobre o jogador é encontrada no livro “O negro no futebol brasileiro” do jornalista Mario Filho, publicado em 1947. Nessa obra, Mario Filho afirma que Joaquim Prado era o ponta do Paulistano, um clube tradicional de São Paulo. Ele descreve Joaquim Prado como sendo preto, mas proveniente de uma família ilustre e rica, frequentando os círculos sociais mais refinados.
No livro “Do fundo do baú”, de Laércio Becker, Joaquim é mencionado na escalação do jogo entre Paulistano e São Paulo Athletic Club, realizado em 19 de junho de 1904, e que terminou em empate de 1 a 1. No ano seguinte, o Paulistano se tornou campeão paulista, e Joaquim jogou pelo menos uma partida, na qual o Paulistano venceu o Mackenzie por 3 a 0 em 13 de maio. Portanto, é provável que Joaquim Prado tenha sido o primeiro jogador preto a se tornar campeão estadual no país.
Francisco Carregal – Preto proletário
O Bangu tem uma história notável de contribuição para o futebol brasileiro, especialmente quando se trata da popularização do esporte. O clube, de origem proletária, era formado por trabalhadores da fábrica têxtil de mesmo nome e foi um dos pioneiros na promoção da igualdade racial no futebol. Durante muito tempo, Francisco Carregal foi considerado o primeiro jogador negro do futebol brasileiro. No entanto, os feitos de Migué e Joaquim não diminuem a importância da história de Carregal, uma vez que ele foi o primeiro operário negro a integrar uma equipe.
Carregal, filho de uma mãe brasileira negra e um pai português branco, trabalhava como tecelão na Fábrica Bangu e foi escalado para jogar contra o Fluminense em 14 de maio de 1905, um dia após o jogo em que Joaquim Prado atuou contra o Mackenzie. O Bangu saiu vitorioso nessa partida, com um placar de 5 a 3.
Vale ressaltar que Carregal era o único brasileiro naquele time, que contava com cinco jogadores ingleses (Frederick Jacques, John Stark, William Hellowell, William Procter e James Hartley), três italianos (Cesar Bochialini, Dante Delocco e Segundo Maffeu) e dois portugueses (Francisco de Barros e Justino Fortes).
Racismo no futebol
O racismo não está só presente no futebol europeu, casos no Brasil são comuns e aconteceram ao longo da história. O futebol brasileiro, com Pelé como ídolo máximo, também tem uma ficha corrida gigante de casos de discriminação racial. Um exemplo é o excepcional goleiro Barbosa, do Vasco da Gama, que sofreu os gols que tiraram o título de campeão mundial do Brasil em 1950. As críticas a Barbosa foram excessivas, levando-o a dizer que pagava por um crime que não cometeu há mais de 43 anos.
O racismo sempre foi presente na sociedade brasileir, e isso se reflete também no futebol. Inicialmente, o esporte era praticado apenas pela elite da sociedade, excluindo a participação das classes populares. Somente em 1923, com o surgimento do Vasco da Gama, que era formado por operários, negros e moradores da periferia, houve uma abertura para a inclusão de jogadores negros.
Ao longo dos anos, o futebol brasileiro viu surgir grandes jogadores negros que alcançaram sucesso, como Pelé, Arthur Friedenreich, Domingos da Guia, Didi, Coutinho, Garrincha, Jairzinho, Djalma Santos, Cafú, Ronaldinho Gaúcho, Dida e Neymar. Esses jogadores, mundialmente reconhecidos por seu talento, também enfrentaram ou ainda enfrentam preconceito devido à cor de sua pele.
Legislação
A primeira lei que regulamentou a questão do preconceito racial no Brasil foi promulgada em 03 de julho de 1951, conhecida como Lei Afonso Arinos (Lei n.º 1.390/51). Essa legislação teve um papel histórico importante, pois buscava punir a discriminação racial no país. No entanto, as condutas discriminatórias eram consideradas apenas contravenções penais e as penalidades aplicadas eram leves.
Somente com a promulgação da Constituição Federal de 1988, mais precisamente no artigo 5º XLII, o racismo foi estabelecido como crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, conforme previsto na Lei n.º 9.459/97. Além disso, o crime de injúria racial também foi tipificado no Código Penal, no artigo 140, § 3º, quando alguém utiliza a etnia, cor, religião, origem ou deficiência da pessoa para ofender sua honra subjetiva.
No contexto esportivo, somente neste século foram estabelecidas normas específicas para o esporte. O Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD), promulgado em 2003, possui o artigo 243-G, que estabelece as punições para quem comete atos discriminatórios com base na origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou com deficiência. As punições podem variar de suspensão de cinco a dez partidas (quando praticadas por atletas ou membros da comissão técnica) a suspensão de 120 a 360 dias (quando praticadas por qualquer outra pessoa física), além de multa de R$ 100 a R$ 100 mil.
Nos últimos anos, tem sido observado um aumento significativo de julgamentos pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) com base nessas normas. É necessário analisar casos concretos que geraram grande repercussão popular na última década, bem como os argumentos utilizados e seus desfechos.
O caso mais conhecido e emblemático ocorreu em 2014 durante o primeiro jogo das oitavas de final da Copa do Brasil entre Grêmio e Santos. Durante o jogo, foram registradas imagens de torcedores do Grêmio proferindo injúrias raciais ao goleiro Aranha, do Santos.
O julgamento desse caso foi longo, com quase quatro horas de duração. A defesa do Grêmio apresentou vídeos que mostravam as medidas tomadas pelo clube contra o racismo, além de depoimentos de atletas em uma campanha contra atos discriminatórios raciais. Por outro lado, a Procuradoria apresentou a imagem clara do incidente durante a partida e também exibiu imagens da torcida entoando cânticos racistas no jogo seguinte.
A defesa do clube gaúcho argumentou que realizaram ações sociais nos últimos anos para prevenir atitudes discriminatórias, punindo os torcedores responsáveis. A Procuradoria defendeu que as ofensas proferidas pelos torcedores do Grêmio foram além do uso da palavra “macaco” e ocorreram em flagrante durante a transmissão televisiva ao vivo. O relator do processo impôs sanções ao clube gaúcho, incluindo a perda de 3 pontos na Copa do Brasil, multas por discriminação, arremesso de papel higiênico e atraso na entrada em campo. O Santos também recebeu uma multa. Os árbitros envolvidos foram suspensos e multados. O STJD julgou outro caso de injúria racial, envolvendo um dirigente do clube Brusque e o jogador Celsinho do Londrina. O Brusque foi multado e perdeu pontos na Série B, enquanto o dirigente foi suspenso. O recurso do Brusque foi parcialmente aceito, retirando a perda de pontos, mas mantendo as multas e a suspensão. O zagueiro do Corinthians, Danilo Avelar, fez comentários racistas durante um jogo de videogame, sendo afastado do elenco. O racismo continua sendo um problema no futebol brasileiro, com casos em investigação. É necessário combater essas condutas, pois o racismo é um crime grave e inafiançável.
Vasco da Gama
Há 120 anos, o Vasco da Gama conquistou diversos títulos importantes, mas nenhum se compara à importância simbólica da carta exposta em seu salão de troféus. Em 1924, o presidente José Augusto Prestes assinou o manifesto conhecido como Resposta Histórica, recusando-se a participar da principal divisão do futebol carioca sem seus jogadores negros, em resposta a uma imposição dos dirigentes da época. Essa atitude desafiadora transformou o clube em um símbolo na luta contra o racismo no esporte brasileiro.
O Vasco, inicialmente focado no remo, começou a se destacar no futebol na década de 1920. Montando equipes com jogadores de classes sociais menos privilegiadas, o clube garantiu seu lugar na primeira divisão ao vencer a segunda divisão em 1922. Com uma equipe composta por operários, motoristas, pintores e faxineiros, o Vasco venceu 11 dos 14 jogos e conquistou o título do campeonato organizado pela Liga Metropolitana de Desportos Terrestres (LMDT).
No entanto, os rivais não ficaram satisfeitos com o sucesso do Vasco e criaram uma nova liga, a Associação Metropolitana de Esportes Athleticos (AMEA), exigindo que o clube excluísse 12 jogadores que, segundo eles, não tinham “condições sociais apropriadas” para o esporte. A diretoria do Vasco, por unanimidade, recusou-se a integrar a AMEA e enviou uma carta explicando por que se opunha à exclusão de jogadores negros e pobres. Enquanto os grandes clubes institucionalizavam o elitismo no futebol com um torneio paralelo, o Vasco ganhava popularidade, especialmente entre as camadas suburbanas da sociedade carioca, e em 1924 sagrou-se campeão invicto do campeonato da LMDT.
Devido ao sucesso do Vasco em termos de público, receita e repercussão, a AMEA decidiu admitir o clube em 1925. A expectativa inicial da liga era ver o Vasco formar equipes genuinamente portuguesas, em referência à colônia fundadora do clube, para demonstrar as verdadeiras qualidades dessa raça secular. No entanto, o aspecto econômico influenciou a decisão tanto do Vasco em defesa de seus jogadores quanto da mudança de ideia dos dirigentes em relação à exclusão do clube. O Vasco percebeu a importância dos jogadores da classe trabalhadora para sua sobrevivência, enquanto a AMEA viu a incorporação desse time que atraía multidões aos estádios como lucrativa. A aceitação de jogadores pretos trouxe retorno financeiro para ambos os lados.
A atitude do Vasco em defesa de seus jogadores ganhou ampla divulgação e contribuiu para sua fama de pioneirismo na inclusão racial no futebol. Embora não tenha sido o primeiro clube a ter jogadores pretos no Brasil, o Vasco se destacou pela maneira como confrontou a discriminação. O clube também foi o primeiro a ter um presidente preto, mas desde então as esferas de poder do Vasco têm sido predominantemente brancas.
Racismo no futebol mundial
O racismo no futebol tem sido um problema persistente há muitos anos, com incidentes que remontam ao século XIX. Somente na década de 1980 é que a questão ganhou mais atenção, com jogadores (como Paul Parker) sofrendo abusos raciais no campo, tornando-se histórias de grande repercussão, embora não tivessem sidos as primeiras. Esses incidentes só foram reconhecidos no início dos anos 2000, quando a FIFA pediu desculpas pela longa história de racismo no esporte.
Mas, apesar desses esforços, o racismo no futebol persistiu, com jogadores de destaque nos últimos anos.
Craques continuam sendo alvo de gritos imitando macaco enquanto cobram um escanteio, ou sequer chegam perto da torcida.
Somente nos últimos anos, atletas como Vinícius Jr e Lukaku tem lutado ao vivo contra os abusos, e pasmem, o ato de confrontar um torcedor racista normalmente resulta à uma penalização do jogador pelo juiz e pela federação.
Os clubes sempre acabam emitindo notas com dizendo que “colaborará com a polícia para identificar os responsáveis pelos gestos e cânticos racistas ocorridos”, mas pouca ação é feita na prática.
No entanto, o incidente envolvendo Vini Jr é apenas um exemplo do problema contínuo do racismo no futebol. Nos últimos anos, diversos jogadores, como Kylian Mbappé, Neymar, Daniel Alves, Kingsley Coman, Bukayo Saka e Marcus Rashford, também foram alvos devido a atuações ruins em algumas partidas. Isso, finalmente, tem levado jogadores e torcedores a exigirem sanções mais severas contra pessoas que agem de maneira racista.
Equal Game
Esses apelos à ação têm sido atendidos de forma branda por organizações como a UEFA, que em 2021 lançou sua campanha #EqualGame, que visa promover diversidade, inclusão e igualdade no futebol. Apesar desses esforços, fica claro que o racismo no futebol continua sendo um problema significativo que requer atenção e ação contínuas mais severas.
A Scottish Premier League adotou medidas mais severas contra o racismo, incluindo suspensões de 10 partidas para jogadores envolvidos nesse comportamento e um sistema online para denúncias. No entanto, ainda é necessário fazer mais para combater o racismo no futebol. Durante a Eurocopa 2020, ocorreram mais de 600 casos de comentários racistas direcionados aos jogadores negros da seleção inglesa, levando a algumas prisões. Ex-jogadores também relataram experiências de racismo no esporte, como o caso dos jogadores do West Bromwich Albion nos anos 1970, que na época não resultaram em nada.
Durante as décadas de 1980 e 1990, o racismo no futebol era comum, com jogadores sofrendo abusos dentro e fora de campo. Torcedores de grupos como o National Front confrontavam os jogadores em partidas fora de casa, sujeitando-os a insultos verbais e cusparadas. Esses incidentes eram considerados normais na época, e os jogadores tinham que suportá-los sem reclamar. Mesmo nos anos 1990, jogadores como Emile Heskey eram alvo de insultos racistas e cusparadas no futebol inglês.
Recentemente, o problema do racismo se estendeu às plataformas online, afetando não apenas os jogadores, mas também seus amigos e familiares. Rio Ferdinand, em seu depoimento ao Comitê Conjunto sobre o Projeto de Lei de Segurança Online no Reino Unido, compartilhou o impacto emocional do abuso racista online, descrevendo como isso machuca e afeta aqueles próximos a ele.
Para combater o racismo no futebol, várias leis foram promulgadas na Inglaterra. A Lei de Ordem Pública de 1986 criminalizou a causa intencional de angústia a outras pessoas por meio de comportamento abusivo ou ameaçador. A Lei de Espectadores de Futebol de 1989 introduziu as ordens de proibição de entrada em estádios como punição para os infratores, uma medida ainda utilizada atualmente. A Lei de Delitos de Futebol de 1991 tornou crime participar de cantos de natureza indecente ou racista em partidas de futebol, e a Lei de Delitos e Desordem de Futebol de 1999 ampliou o alcance do delito para incluir cantos individuais, removendo a exigência de participação em grupo. Muitos legisladores do país falam que as leis estão ultrapassadas e muitas vezes são ineficazes na dinâmica atual do racismo que age por diversos meios, inclusive nas mídias sociais.
Plataformas Digitais
Milhares de comentários, posts, tweets e imagens de cunho racista são publicados diariamente em todas redes sociais. Este crime ainda é pouco combatido, algumas vezes pela ganância das redes sociais, que não conseguem agir a tempo, ou abrem brechas ao racismo sob o pretexto da liberdade de expressão. AAs próprias autoridades só agora conseguem fazer investigações mais efetivas em um crime que é relativamente novo, mas no meio de uma mar de racistas, é como achar agulha em um palheiro.
A luta só agora ganha força
A luta contra o racismo no futebol está finalmente ganhando força, apesar de contínuos abusos ao longo do século. Somente uma reforma rígida na legislação esportiva pode por fim á anos de assédio, violência e discriminação. O Judiciário dos países onde essas cenas acontecem todos os finais de semana também tem essa responsabilidade, junto com todos os atletas, de contribuir para o bem comum. A igualdade no esporte não é apenas um prêmio ou uma evolução no futebol, é a única maneira de garantir que a prática continue viva, superando um passado de racismo e preconceito.
fotos: AP News, Reuters, CNN, ACidadeON, Jogada 10, Rede Brasil Atual, El País e New York Times.